segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Quando se analisa um magnata, pode ser difícil para o profissional resistir à tentação de adotar, de maneira bajulatória, o ponto de vista do paciente. Texto de Woody Allen.

Se as orgias, o arremesso ocasional de um cristão aos leões e a regurgitação de línguas de pavão a fim de preparar o estômago para a segunda rodada de miolos de macaco representaram, para Edward Gibbon, indícios de que a toga romana estava prestes a sair de circulação, uma reportagem na qual meus olhos resvalaram quando punha em dia a leitura de números atrasados do New York Times serve de funesto testemunho sobre o futuro dos adeptos de banhos de leite.
Parece que agora existem psicanalistas especializados no tratamento dos super-ricos, um grupo cuja fortuna e poder criam problemas peculiares que intimidam e até instigam a inveja de psiquiatras classificados em faixas de tributação do imposto de renda menos obesas. Segundo a reportagem intitulada “Os desafios de tratar pacientes que pagam 600 dólares por sessão”, quando se psicanalisa o magnata típico, pode ser difícil para o médico resistir à tentação de “adotar, de maneira bajulatória, o ponto de vista do paciente”.

Em certos casos, aponta a matéria, “os pacientes tratam o terapeuta como apenas mais um membro de seu séquito de serviçais”. Um analista, incapaz de encontrar cinquenta minutos livres para atender um mandachuva, recebeu da secretária do paciente a seguinte pergunta: “Que tal às 10 horas? Ele vai voar para Hamptons, mas vamos mandar um carro buscar o senhor para que possa pegar o helicóptero junto com ele e fazer a terapia durante o voo.” De resto, os problemas que afligem os super-ricos podem ser menos existenciais do que, digamos, um mineiro de carvão que passa a sofrer de claustrofobia ao descer quilômetros abaixo da superfície da terra. Como exemplo de uma crise de maior requinte, a reportagem apresenta uma senhora abastada que se convenceu de que era uma jogadora de tênis pouco hábil. Podemos imaginar os soluços histéricos de uma loura da Quinta Avenida, paramentada de Prada: “Doutor, o senhor tem de me ajudar. Parece que não consigo de jeito nenhum acertar meu segundo saque.”
Toda essa decadência não poderia deixar de trazer à mente o seguinte esquete, que tanto pode ser lido como rasgado, ou quem sabe possa ser usado para deduções do imposto de renda.
O doutor Leon Parafuso Frouxo era a imagem exata que um cartunista faria de um psicanalista freudiano: meio calvo, atarracado, um cavanhaque à la Van Dyke, que evocava o mundo de Strauss e strudel da velha Viena, enquanto caminhava afobado, não pela Ringstrasse, mas pela Park Avenue, rumo a um atendimento domiciliar. “Não posso me atrasar”...sussurrava entre bufos e arquejos. “Não posso deixar o senhor Pólipo esperando. Não com a posição que ele ocupa na classificação da agência de negócios Dun & Bradstreet. O homem ganha mais em títulos do Tesouro num dia do que eu numa década. Na sexta-feira passada, quando me atrasei, ele me esculachou. É humilhante ouvir alguém falar assim com a gente. E a surra, então? Eu devia ter terminado o tratamento naquele minuto, mas detesto abrir mão de usar seu jato Gulfstream.


É interessante a neurose de que ele sofre: uma mórbida incapacidade de aprimorar sua tacada de golfe. Rico do jeito que é, pesa sobre o homem um tamanho bloqueio que ele só consegue dar tacadinhas de leve, como se a bola estivesse já perto do buraco. A causa subjacente se revelou óbvia a partir de um sonho que ele contou, no qual os 400 mais ricos da revista Forbes apareceram em sua janela com chapeuzinhos de cata-vento e regaram seu corpo com um molho de carne morninho. É claro que o senhor Pólipo rejeitou minha interpretação do sonho em favor da sua, e fui obrigado a concordar com ele, tendo em vista nossos patrimônios líquidos relativos. Sei que ele se sente superior a mim, e outro dia o surpreendi num ato falho muito revelador, quando quis elogiar minha serenidade e me chamar de “cabeça-fria” e usou “boia-fria”.
Tenho de conversar com meu próprio terapeuta sobre os problemas de identificação com a clientela abastada. Sendo a minha receita mensal o que é, o que será que passou pela minha cabeça quando paguei uma volumosa entrada para a aquisição de um iate de 60 pés à prestação? Foi deveras embaraçoso quando uma equipe da financeira apareceu e retomou a posse da embarcação, e eu estava em pleno mar, obrigando meus convidados a nadarem até a praia. E agora toda essa aflição em torno dos problemas conjugais de Pólipo. Quando sugeri que um relacionamento adúltero não resolveria nada, ele discordou enfaticamente e, que inferno, depois de alguns drinques e um final de semana com ele no Mar-a-Lago Club, ele me convenceu mais uma vez de que eu estava errado, e que um par de garçonetes de 19 anos seria a cura perfeita para a sua depressão. Passei para ele o telefone de Lola, a secretária de meu filho. Por que não? Além de solteira ela é, pelo que soube, um verdadeiro fenômeno. Também devo insistir para que ele não receba telefonemas de negócios durante nossas sessões. Sobretudo porque sempre me pede para sair da sala e esperar no corredor até a conversa terminar.”
Na esquina da rua 74 com a Park Avenue, Parafuso Frouxo, imerso em reflexões, nem percebeu para onde estava andando e enrolou-se na coleira de um cachorro puxada por um homem de ar erudito que passeava com um poodle.
“Santo Deus, tome cuidado”, repreendeu o homem. “Este animal é ganhador de vários prêmios.” E depois, com olhos arregalados: “Leon Parafuso Frouxo, pelas barbas do Profeta!”
“Vilmos”, disse Parafuso Frouxo, reconhecendo na mesma hora o colega de profissão. “Não nos vemos desde a convenção da Filadélfia. Ainda não tive a chance de lhe dizer como apreciei seu artigo ‘Amnésia como mecanismo de defesa contra o ato de dar gorjetas’. Não sabia que você tinha um cão premiado em exposições.”
“Ah, não é meu”, explicou o doutor Miolomole. “Estou só passeando com ele para meu empregador. Edwards, o motorista, telefonou avisando que estava doente.

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