quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

Uma estória muito curiosa de J.A. Gueiros.

Um Cristo quase desconhecido encontra-se na pequena igreja do Borgo Di Sansepolcro, perto de Arezzo, na Toscana. É um afresco de Piero della Francesca, descrito por Aldous Huxley como a mais bela pintura do mundo: uma Ressurreição de Jesus deliberadamente executada a partir de dois pontos de fuga, mediante um truque que os cubistas só usariam com segurança quase dois séculos mais tarde. Nesse afresco genial, o Cristo que se ergue da tumba parece encarar o observador diretamente nos olhos, enquanto os soldados adormecidos são vistos de cima, sem profundidade. O efeito desse conjunto de imagens torna Jesus tão destacado que parece estar saindo de dentro da pintura para a vida real. A obra, cheia do simbolismo do Renascimento, retrata, do seu lado esquerdo, as árvores secas e desfolhadas do outono enquanto mostra à direita uma exuberante vegetação sob as nuvens iluminadas nos matizes cor-de-rosa da aurora.
Poucos viajantes e artistas, nem mesmo os mais eruditos, conhecem essa pintura. Como também são poucas as pessoas que já leram esse guia de viagem escrito por Huxley, intitulado Along the Road, em que o celebrado autor inglês de notáveis romances e ensaios científicos, resolve descrever suas viagens através da Itália, aconselhando os leitores a não se fixarem, como é comum, nas grandes cidades do padrão de Roma, Florença e Milão no afã de apreciar as famosas obras de arte dos grandes mestres. Sugere que procurem também os pequenos burgos, os vilarejos fora das rotas tradicionais onde se podem encontrar tesouros artísticos insuspeitados. Essa descoberta do mural de Piero della Francesca, numa igrejinha de Sansepolcro, por exemplo, é uma das valiosas indicações que Huxley nos oferece em Along the Road.





Mas preciso dizer que devo toda essa erudição a um saudoso amigo, o diplomata Mário Gibson Barboza que percorreu os melhores e mais importantes postos da carrière, e chegou ao ápice como Ministro das Relações Exteriores, embaixador junto a ONU, tendo trabalhado na companhia de Araújo Castro, Vasco Leitão da Cunha, Afonso Arinos e outros figuraços. Pois foi o embaixador Gibson Barboza, pernambucano de Olinda, meu nobre conterrâneo, dono de uma cultura respeitável, quem me iniciou na leitura de Along the Road, livro que eu sequer suspeitava existir pois de Huxley só conhecia os celebrados Contraponto, Admirável Mundo Novo, Sem Olhos em Gaza, Também os Cisnes Morrem, O Macaco e a Essência e o crepitante As Portas da Percepção em que, depois de provar os efeitos estupefacientes da droga Mescalina, o mestre inglês descreveu tudo o que sentiu durante a experiência.
Então o embaixador Gibson Barboza me presenteou com uma cópia facsimilar desse livro raro, Along the Road (pois já não havia no comércio, como até hoje não há, qualquer exemplar dessa obra esgotada de Huxley). Lendo-o pude tomar conhecimento da Ressurreição de Cristo de Piero della Francesca, impressionante afresco da capela de Sansepolcro, onde nos deparamos com o misterioso olhar de Jesus. Mais tarde, comentando esse fato com minha irmã Lúcia, que tem cultura bíblica melhor que a minha, ouvi dela a citação adequada: Primeira Epístola de São Paulo aos Coríntios, versículos 11 e 12. – 11: – Agora só podemos ver a Deus como uma imagem distorcida e obscurecida no espelho. 12: Mas um dia o veremos face a face.






O embaixador Gibson, um estadista do nosso tempo, que nos lembrava pela fidalguia um diplomata do antigo regime, cultivava com especial orgulho o fato de ter nascido em Olinda, no seu dizer irônico, uma cidade histórica da maior significação que agregava o Recife nas cercanias. Até sabia seu nome original, Marim dos Caetés, anterior à descoberta de Cabral e nos encorajava a ler livros menos batidos sobre sua cidade natal. Por isso os colegas do Itamaraty já o tinham apelidado, afetuosamente, de “Marquês de Olinda”.
Gibson faleceu no Rio, em 1985, pouco antes de completar 90 anos, ainda rijo e esbelto. Não deixou herdeiros. Separado de sua primeira mulher, Iolanda, casou-se depois com a bela Julia Blacker Baldessari, nessa ocasião muito mais nova que ele. A diferença de idade nunca impediu que se mantivessem apaixonados e felizes em toda sua vida, numa convivência análoga a de Charles Chaplin e Oona O´Neil que se casaram quando ele tinha 80 anos e ela apenas 18, provando que nesses casos de amor assimétrico, o imponderável com freqüência sobrepõe-se à lógica. Julia Gibson está viva e saudável, não perdeu os encantos da juventude e continuua muito querida dos amigos e colegas que sempre a prestigiaram. Que Deus mantenha seu embaixador Mário num belo posto acima do arco-íris. E possa seu espírito de “marquês de Olinda” habitar a eternidade em paz.



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