quinta-feira, 10 de maio de 2012

Genios que nunca escreveram. Texto de Michel Laub

“Nesta geração, é visível que as gentes que escrevem melhor não escrevem livros. Escrevem blogues durante uma época, fazem umas graças, depois talvez twitter. Depois param de escrever, ou gastam o talento em jornalismo ou outras coisas abaixo deles”. A opinião é de Alexandre Soares Silva, ele mesmo um escritor muito bom e engraçado, e segue num tom talvez a sério, talvez não, provavelmente as duas coisas: “Entendi que sempre deve ter sido assim: que no mundo sempre houve Goethes que escreveram um soneto ou dois, que mostraram para os amigos e depois foram fazer outra coisa (…). Flauberts que não se deram ao trabalho de escrever um livro, porque acharam a busca pela glória uma boçalidade.”
Desde o início do ano estou tentando iniciar um romance, e ao menos numa coisa concordo com os tipos descritos por Alexandre: o universo se expande, o tempo é ilusório e tudo é triste, e diante disso é penoso se dedicar a uma luta que sempre tem algo de ridículo. Só que o argumento da escolha, do talento que só não se concretiza por falta de vontade, tem algo de idealizado. Primeiro porque a literatura — óbvio — só existe no mundo concreto. Num outro contexto, Lacan declarou que pensava com os pés. Um escritor pensa/cria com os dedos, durante a digitação ou caligrafia de algo que ele acha que já conhece, mas cujo resultado não conta com nenhuma garantia anterior e em geral é diverso do que se espera. O Flaubert que nunca escreveu poderia ser o Fangio que nunca pilotou — jamais saberemos, e por isso não tem importância.
O segundo motivo é que o conceito de “escrever bem” — óbvio igualmente — é um tanto variável. As exigências da ficção são atenuadas num formato menor e menos imaginativo, como uma reportagem, um post ou um tuíte. Aos últimos pode bastar repertório, esperteza ou humor, enquanto quem pratica a primeira está entregue à imensidão tediosa que deve ser preenchida parágrafo a parágrafo, capítulo a capítulo num calvário de bloqueio e angústia. Para um tuiteiro ou jornalista, a tarefa é encontrar as palavras certas para exprimir uma ideia que já está cristalizada, polir ou não atrapalhar sua expressão. Já para um ficcionista a ideia é só um primeiro passo. É preciso ter fôlego, técnica, paciência, concentração e sorte de ver a faísca inicial — na melhor hipótese, uma sinopse longa ou um caderno cheio de anotações sobre personagens e cenas — se transformar numa narrativa autônoma, que obedece a convenções particulares e é julgada segundo critérios não aplicáveis a qualquer texto.

Considerar o segundo caso uma extensão bem-sucedida do primeiro, portanto, e sem entrar no mérito sobre qual é mais relevante diante da eternidade indiferente, é discutível. Idem a visão do que é glória: ao tuiteiro/jornalista/frasista basta querer participar do chamado debate público, e o talento tornará a tarefa relativamente fácil. Se há analogia mais próxima da inspiração romântica que pouco depende de trabalho, algo normalmente associado a artistas, é essa. E se há exemplo melhor de busca por sucesso cintilante, certamente não é o do autor que passa anos enfrentando suas 300 páginas em branco — para ao final ser lido por meia dúzia, e quem sabe elogiado por outra meia dúzia em meia dúzia de textos que serão esquecidos em meia dúzia de dias. Um caminho quixotesco, digno e patético, que o próprio Alexandre descreve no que soa como ironia carinhosa: “Ponham-se à prova contra as gerações que os precederam, ao invés de ficar do lado de fora do ringue, comendo mendoratos.”
Olhando bem, é uma ambição contraditória, que se mistura com a humildade da espera e a necessidade de eventualmente se rebaixar: como regra geral, válida para a maioria das obras fora dos domínios da sátira e gêneros correlatos, um ficcionista precisa estar no nível de seus personagens — incluindo suas limitações de linguagem, intelecto e charme — para gerar autenticidade e empatia. Tente achar um tuiteiro/jornalista/frasista que abra mão de parecer esperto e informado. Tente achar um desses talentos literários em potencial que aceite a aleatoriedade (e o vazio) do sucesso e do fracasso. A diferença, que talvez seja a origem da vocação genuína de um escritor, conceito que passa longe do que ele pensa que é e de onde pensa que pode chegar, começa por aí.

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Michel Laub nasceu em Porto Alegre, em 1973. É autor de cinco romances, todos pela Companhia das Letras. O mais recente Diário da queda, foi publicado em março de 2011. Ele contribui para o blog com uma coluna mensal.

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