domingo, 1 de junho de 2014

Seu Zuca por Paloma Jorge Amado!

Crônica de Domingo, 1º de junho de 2014: Seu Zuca


Quando mudamos para a Bahia no início dos anos 60, o jardim da casa do Rio Vermelho não existia. O terreno era a metade do tamanho do que ficou no final, com a compra de vários terrenos. Ele, na verdade era um quintal onde só havia duas mangueiras e um sapotizeiro, antigos e resistentes e... Muitas formigas. Daquelas parrudas, cheias de saúde e orgulho de sua tarefa de cortar plantas, não importando quais. Num primeiro momento, meus pais não se deram conta da tragédia, adubaram abundantemente a terra, compraram uma enorme quantidade de mudas enxertadas de cítricos, sobretudo laranjas e tangerinas. As pobrezInhas não sobreviveram a uma primavera. As formigas fizeram a festa, encheram-se de vitamina C... Um caos. Carybé, a quem papai tinha se vangloriado de seu pomar de laranjas, tão lindo quanto o do Alhambra!, riu bastante de sua derrocada e depois aconselhou que procurasse o departamento de Parques e Jardins da Prefeitura. Assim ele fez e chegou a solução, um matador de formigas: seu Zuca.
O especialista examinou a questão, viu que não seria tarefa fácil:
-- Doutor, se eu acabar com as formigas de sua casa, não vai adiantar nada. O Parque Cruz Aguiar está lotado de saúva, aliás, todo o Rio Vermelho está, e elas vão voltar...
-- E o que a gente pode fazer, seu Zuca?
-- Acabar com elas tudo, Doutor. Mas o senhor vai ter que ser o responsável, que essa área não vai ser atendida pela Prefeitura tão cedo.
E assim foi feito. Seu Zuca, quando não estava trabalhando para a Prefeitura, exterminava os formigueiros do bairro todo. Levou meses no trabalho.
Papai um dia perguntou por sua família.
-- Célia e eu temos 12 filhos, Doutor!, ele dizia com grande alegria.
-- Dona Célia pariu doze vezes, Zuca? Pobrezinha! Não foi demais, não?
-- Ela só pariu nove, os outros trés são órfãos da família que nós cria.
-- Mas Zuca, com nove filhos e um salário mínimo da Prefeitura já não é muito difícil?
-- Ah, Doutor, se o senhor visse a pobreza deles, era muito maior que a nossa.
Zuca, naquele momento, conquistou o coração do doutor e de sua família para sempre. Ganhou emprego de jardineiro para as horas vagas, dobrando assim o salário da Prefeitura.
O que tinha de competente como matador de formiga, tinha de incapaz no manejo com as plantas, apesar de cumprir religiosamente as tarefas que ele mesmo definia. Por exemplo, resolvera que deveria regar o jardim às cinco da manhã, chovesse ou fizesse sol, literalmente. Isso mesmo, várias vezes foi visto regando de guarda-chuva, embaixo de temporal. O seu problema maior, no entanto, era compreender a pressa paulista de minha mãe. Realmente, para os baianos em geral, essa agonia paulista nunca fez o menor sentido.
-- Zuca, trouxe essas mudas de Espada de São Jorge para plantar em volta da varanda. Deixei bem ali, está vendo?
-- Tou, sim senhora.
-- Então planta.
Ela saía por um lado, seu Zuca pelo outro, e as mudas ficavam todas ali, ao sol, esperando.
Uma hora depois mamãe passava e via as mudas tristinhas, sofrendo o calor, raizes de fora.
-- Zuca, corre aqui.
Ele chegava devagar, correr era palavra fora de seu dicionário.
-- Que foi, Don'Zélia?
-- Eu não disse para você plantar essas mudas?
-- Disse, sim senhora...
-- Cadê, que você não plantou ainda...
-- Mas vou plantar, sim senhora...
-- Quando, Zuca?
-- Pod'eixar que mais tarde eu planto...
-- Mais tarde não, Zuca, agora! Vou ficar aqui parada olhando até você plantar...
Zuca ria o riso mais franco e, antes de virar as costas para a patroa e suas mudas de Espada de São Jorge,dizia:
-- Dona Zélia é interessante!

Toda vez que meus pais viajavam para ficar alguns meses fora, Zuca enviava cartas dando conta da situação do jardim. Era sempre gentil e pessimista, começava invariavelmente assim:
-- Dona Zélia e Doutor Jorge, bom dia! As coisas aqui está tudo mais ou menos. Os morcegos deram no sapotizeiro, não ficou um pra contar história. A mangueira está carregada, se der muita sorte e não aparecer nenhuma praga, vai dar pra tirar bastante carlotinha para a chegada do Doutor em dezembro...

Uma vez, mamãe ganhou uma muda de lichia, coisa muito desejada, vinha grandinha e enxertada e ela já vizualizava a linda árvore carregadinha de frutos deliciosos em seu jardim. Iam viajar em poucos dias, então ela levou para seu Zuca e começou a lista de recomendações:
-- Olha aqui, Zuca, esta muda é de uma planta estrangeira muito rara. Há anos que eu desejo plantar uma aqui no jardim, mas só agora consegui esta muda. Uma apenas! Ela tem que vingar, ficar bonita, e você vai ver só que fruta mais gostosa. Então você vai pegar a pá agora, abrir um buraco bem ali e plantar.
-- Sim, senhora, disse ele saindo.
-- Volta aqui, Zuca, é para plantar neste momento, eu não saio daqui enquanto não ver esta muda plantada.
Seu Zuca viu que não adiantava discutir, nem fugir, aquele senhora paulista estava cada vez mais interessante. Plantou. Então vieram novas recomendações:
-- Cuide dela como cuida de seus filhos, por favor. Carinho, atenção, aguando todos os dias. Como vamos ficar seis meses fora, peço que mande sempre notícias.
E lá se foi o casal Amado para mais uma longa temporada no exterior. Uma única notícia de Zuca, pongando na carta da secretária, dizia mais uma vez que estava tudo mais ou menos.
Quando já arrumavam a bagagem para a volta ao lar, chegou carta com as tão esperadas notícias do pé de lichia. Dizia assim:
-- -- Dona Zélia e Doutor Jorge, bom dia! As coisas aqui está tudo bem!
Essa era uma novidade, pela primeira vez as coisas iam bem. Continuava:
-- A planta rara e estrangeira de Dona Zélia está uma beleza! Ela vai ficar muito feliz quando chegar. Cresceu muito e já deu duas pitangas!
Pois é, a lichizeira revelou-se pitangueira, para grande risadaria de meu pai e desconsolo de minha mãe.
Tantos anos de convívio, tantas histórias engraçadas e surpreendentes deste homem gentil e tranquilo, que chamava jardim de jardinho e pudim de pudinho! Poderia escrever vinte crônicas e não se esgotava o assunto. Ficou em casa até se aposentar. Seu Zuca rimava com bondade.

Bom domingo a todos! O meu vai ser ótimo, na Suiça, em companhia de meu mano Juca e sua linda Dorinha, minha comadre.

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