domingo, 19 de outubro de 2014

A comida baiana de Jorge Amado. Por Paloma Jorge Amado.

Crônica de Domingo, 19 de outubro de 2014: O livro relançado

Entre dois (re)lançamentos do meu livro "A cozinha Baiana de Jorge Amado", gostaria de contar deste livro, que renasce após anos esgotado, e há 20 anos de seu lançamento.
Leitora assídua de George Simenon, apaixonada pelo Comissário Maigret, um dia ganhei de meu pai o livro "Le cahier des recettes de Mme. Maigret". Em estrutura bastante simples, Courtine, o autor, apresentava os pratos comidos pelo comissário da polícia francesa, suas receitas, a armonização com a bebida, além de citar um trechinho do livro onde o prato aparece. Eu, apaixonada por livros de cozinha e pelo escritor franco-belga, fiquei deslumbrada. Tive tanto prazer com a leitura, que passei a pensar em fazer algo semelhante com a obra de papai. A maior diferença seria analisar toda a obra e não tratar apenas de um só personagem.
O trabalho inicial foi a leitura em ordem cronológica dos livros, fichando todas as referências a comidas e bebidas, e à falta delas quando em momentos de fome e pobreza. Levei seis anos para ir do primeiro ao último, sendo que os dois derradeiros, "O sumiço da santa" e "A descoberta da América pelos turcos", foram escritos enquanto eu já realizava minha pesquisa. O tempo foi longo, pois eu trabalhava em outras coisas ao mesmo tempo, parte enquanto era assessora da Presidência da República, a outra parte nos quatro anos que trabalhei em Paris, na Unesco.

Quando voltei a morar no Brasil, estava com a coleta de dados pronta, chegara a hora de mergulhar no universo gastronômico amadiano. A tarefa se mostrou difícil e ao mesmo tempo deliciosa. A dificuldade se encontrava nas múltiplas facetas da comida, dentro da literatura. Rápido percebi que, aquilo que papai não cansava de repetir, era a pura verdade: "Os personagens são de carne e osso, precisam respirar, comer, amar". Os dele comiam com gosto, com volúpia, matavam a fome, ou dela morriam quando a miséria era inclemente.
Fui descobrindo que o ato de alimentar ia além. Quase um personagem em si, uma jaca dura madurinha impede o rompimento, anunciado, da amizade de Curió com Cabo Martim, em "Os pastores da noite", no dia em que o primeiro vai contar ao amigo que ficará com sua mulher. O sabor, o cheiro e o mel da fruta quebram a tensão, colocam as coisas em seus devidos lugares, aprofundam a amizade e resolvem o impasse. Uma moqueca de peixe é o único elo de ligação de Quincas Berro Dágua com sua família, trocada anos antes pela liberdade nas ruas da cidade da Bahia. A família, tão rígida, se permite certo prazer comendo o prato preferido antes do velório. Depois chega a vez do próprio defunto, que vai se regalar com os amigos no saveiro de mestre Manoel, antes de se atirar ao mar.
Eram muitos e diferentes os detalhes, me deixando em dúvida sobre o que fazer com o material tão rico. Confesso que pensei em retomar a faculdade para uma pós-graduação em psicologia social, ou talvez em antropologia, tendo o comer na literatura como tema. O gosto pelos livros de cozinha, no entanto, se sobrepôs, e eu estabeleci a estrutura de três livros: Cozinha Baiana, Frutas e Comida Ritual. 
Passava agora para outra etapa: as receitas. Queria encontrar as melhores, aquelas que faziam fama na Bahia. Saí em busca das cozinheiras, com suas especialidades. Papai, que rondava o assunto, me dava dicas. 
-- Que tal falar com dona Maria?
Dona Maria Eulina era uma cozinheira de mão cheia e tempero perfeito. Toda vez que se fazia festa grande na Rua Alagoinhas, era ela quem se ocupava da cozinha.
-- Mas o sarapatel, minha filha, tem que ser o de Aíla!
Ele dava a dica para a receita perfeita do nosso prato preferido. Aíla era a cozinheira de Calá e Auta Rosa, seu sarapatel imbatível, dando água na boca dos viventes.

Com Maria Sampaio fui conhecer Dadá, que me ensinou seus segredos e virou minha irmã.
Busquei dona Canô Velloso para bolos e doces. Foi uma tarde maravilhosa em Santo Amaro. Ela falava como minha avó Lalu, cheia de sabedoria, absolutamente descrente da minha capacidade de reproduzir a receita à altura:
-- Ah, minha filha, duvido que você acerte... Esse doce de casca de laranja, Bethânia adora! Mas só come o que eu faço, muita gente já tentou... Não fique triste, ninguém acerta mesmo...
-- Paloma, corre aqui, era papai uma vez mais, dando mostras do seu interesse por meu trabalho. Chegou Rufino, peça a ele para ensinar o Teiú Moqueado.
E lá ía eu de papel e lápis na mão encontrar seu Rufino, ex-pedreiro na construção da casa, que se tornou um amigo. Enroladíssimo, deu a receita mais difícil de se decifrar:
-- Fica no fogo o tempinho dele...
-- Dele quem, seu Rufino? 
-- Do teiú, ora...
E assim foi, muitas receitas, muitos mestres da arte culinária, tudo feito em casa e aprovado.
Quando dei a escrita por finda, imprimi e dei o volume para papai ler. Ele era bastante rigoroso com a sua família, um crítico severo de tudo que mamãe, João e eu escrevíamos, assim que esperei bastante ansiosa por seu comentário, que chegou uma semana depois.
Me disse que gostara bastante (ufa, que alívio!), mas que tinha poucos textos meus. Achava a introdução muito boa, acreditava que eu poderia, e deveria, escrever textos sobre cada receita. Me intimava mesmo a fazê-lo. Fiquei feliz por ele confiar na minha escrita, mas morta de medo de não conseguir cumprir a tarefa. Consegui! Ele gostou!
Uma última reclamação vinha anotada na última página, sublinhado: CADÊ O CREME DE ABACATE? A discussão foi longa, eu sustentava que ele nunca dera um creminho de abacate a nenhum personagem, ele contestava que dera sim, não lembrava a quem, ademais era uma de suas sobremesas favoritas. O livro acabou saindo sem o creme de abacate. Quando voltei ao banco de dados para escrever o livro das frutas, lá estava ele, papai tinha razão. A receita entrou aí, com as explicações e meus pedidos de desculpas.
O livro da cozinha baiana fez sucesso, foi traduzido para o italiano e o francês, teve nova edição sem ilustrações e se esgotou. Não foi reeditado, e eu recebia, frequentemente, pedidos de exemplares. Ao chegar ao fim seu contrato, o ofereci à Companhia das Letras, que vinha de formar parceria com a Panelinha, de Rita Lobo. Foi a sopa no mel, o ouro sobre o azul, a união exata. Rita entendeu meu livro perfeitamente, deu às receitas uma padronização há muito desejada e o vestiu de ouro e rendas. Está lindo!
Dia 14 passado recebi os amigos paulistas para apresentá-lo. No próximo dia 21 será a vez dos amigos cariocas -- os habitantes e os de passagem -- me darem a alegria de abraçá-los. A festa baiana será em novembro, dia 11! Os convites vêm anexados, para ninguém esquecer! 
Bom apetite... Ops... Bom domingo a todos!

Nenhum comentário:

Postar um comentário