Cortejando segundos
Cora Ronai
Em 2011, quando completou 30 anos, Cesar Kuriyama juntou todas as suas economias e pediu demissão do emprego. Diretor de cinema, animador, apaixonado por design e fotografia, ele estava muito insatisfeito com o trabalho numa agência de publicidade, e queria fazer algo mais criativo com o seu tempo. Entre outras coisas, inventou, então, um pequeno projeto pessoal: filmou um segundo de cada dia do ano sabático, que mais tarde reuniu num vídeo chamado "1 second everyday -- Age 30". Os pequenos trechos são pouco mais do que fotografias, e o seu conjunto faz um todo fascinante: há amigos no bar, aniversários, multas, shows, meios de transporte, noites de televisão em casa, viagens, passeios de bicicleta, conferências, um casamento, um funeral, futebol, piscina, pescaria e praia, bichos, estradas, voos, uma longa doença na família. Cesar fez uma palestra no TED sobre a experiência, e o vídeo, é claro, viralizou: apenas no YouTube foi assistido quase um milhão de vezes.
O projeto inspirou uma quantidade de pessoas, e logo vídeos parecidos pipocaram na rede, alguns com variantes curiosas da ideia -- só refeições, só a vista da janela, só selfies. Um pai registrou todo o primeiro ano do bebê, uma moça filmou todos os sapatos que usou ao longo do ano. O resultado era divertido, mas o processo bastante trabalhoso, de modo que muita gente que começou cheia de gás desistiu no meio. É que não bastava registrar um momento de cada dia; era preciso também cortar os trechos na fração de tempo certa e emendá-los uns com os outros em ordem cronológica.
Em fins de 2012, Kuriyama lançou, no Kickstarter, o projeto de um aplicativo para facilitar a tarefa. Ele precisava de U$ 20 mil; em 15 dias, levantou quase U$ 57 mil, doados por 11.281 pessoas. Duas semanas depois, "1 second everyday" chegou à App Store, onde fez tanto sucesso que acabou entre os três aplicativos mais procurados da temporada. Uma versão para Android foi lançada meses depois.
Cesar Kuriyama virou uma espécie de celebridade entre nerds. Fez várias outras palestras, deu entrevistas e continua a gravar um segundo por dia, religiosamente. Ele segue aperfeiçoando o aplicativo, que com o aumento do número de usuários vem ganhando ares comunitários. Há pessoas que mostram os seus projetos anuais e, às vezes, há desafios compartilhados: na virada do ano, por exemplo, gente do mundo inteiro mandou um segundo do seu réveillon para um grande filme coletivo.
::::::
Quando o "1 second everyday" foi lançado, tentei fazer o meu próprio filme com ele. Não deu certo. Na época só existia a versão para iPhone, e as minhas câmeras favoritas sempre foram Windows Phone ou Android, de modo que eu mais me esquecia do que me lembrava do projeto. Este ano, porém, levar o diário minimalista a sério foi uma resolução de Ano Novo que me propus a cumprir.
Fiz vídeos nos dois primeiros dias de janeiro; nos dias três e quatro me esqueci. No dia cinco tive uma reunião séria de mim para comigo, onde palavras ásperas foram trocadas; e, desde então, não houve mais dia sem que eu não tivesse feito o meu filminho. Hoje, passados dois meses, estou tão viciada no projeto que não há mais possibilidade de me esquecer dele; mas antes mesmo disso, com uma ou duas semanas de persistência, percebi que o ato de capturar cada dia estava mudando a minha vida de uma forma muito curiosa.
Para começo de conversa, passei a prestar muito mais atenção ao correr dos meus dias. Quando se tem a missão de registrar 24 horas num só momento, todos os momentos adquirem relevância: o que aconteceu de mais representativo? O que foi mais interessante? O que vai funcionar melhor no vídeo? Cada dia tem 86.400 segundos, mas só se pode escolher um deles. É um grande desafio.
O mais difícil, para mim, tem sido fugir do óbvio. A tendência inicial de quem tem uma bela vista, como eu tenho, é mostrar o que está lá fora; mas uma sucessão de imagens da mesma janela, se não for um projeto especial em si, acaba se tornando monótona. E como dar o peso justo aos vários netos e animais de estimação da família, sem transformar o vídeo numa longa sucessão de crianças e gatos? Idas ao supermercado, ao caixa 24 horas ou à livraria não são material dramático de grande impacto, mas precisam ser registradas de vez em quando. O Roomba andando pela casa, a máquina de fazer café, a lavadora: todos adquirem um significado, viram personagens ou candidatos a um momento de protagonismo. Viagens são particularmente complicadas: filmo o aeroporto, o avião ou o hotel?
Há dias em que acontece tanta coisa que chega a ser injusto escolher um segundo só; outros passam em tão brancas nuvens que é preciso correr atrás de assunto. Os dias agitados rendem os momentos mais ricos, os dias parados os momentos mais criativos. Para conseguir clipes diferentes tenho passeado mais, e aceitado convites que normalmente recusaria, o que é ótima coisa para quem vive cercada de gatos, livros, DVDs e tantas boas desculpas para ficar em casa.
Tenho muita pena de só ter começado esse meu diário agora: quantos dias já sumiram na minha vida sem deixar vestígios!
Um segundo não é nada, e é tudo. No final, no vídeo de seis minutos e meio que contém um ano de segundos, cada um deles pode ser uma pequena cápsula do tempo, a ponta de um fio interminável de lembranças.
O que você está esperando para começar o seu?
(O Globo, Segundo Caderno, 18.2.2016)
No vídeozinho anexo, o meu ano até agora.
Nenhum comentário:
Postar um comentário