"Travesti na cadeia sempre foi escória. Era uma relação curiosa com os presos. Ao mesmo tempo que eram zoados pela frente, os mais ajeitados eram cortejados por trás (com o perdão do trocadilho).
Preso poderoso tinha sua própria “bicha”, que em troca de proteção lavava, cozinhava e dava pra ele, como uma esposa convencional. Só tinha que desaparecer no fim de semana, quando a esposa “oficial” vinha chegava pra visita intíma.
Era um universo paralelo dentro da cadeia. Moravam no pavilhão 5 com os jurados de morte e estupradores. Algumas faziam programas em troca de maços de cigarro enquanto outras eram tão bagaceiras que nem isso conseguiam. Uma olhada torta para o preso errado era motivo pra que fosse surrada, as vezes até a morte.
Em dezembro de 1999, a voluntária Sophia Bisilliat realizou o antigo sonho de organizar um desfile de moda tendo como modelos apenas travestis detentos. Para isso contou com a ajuda do Coordenador de Esportes Valdemar Gonçalves e do estilista Marcelo Sommer, que trouxe toda sua estrutura de maquiadores, DJ’s e iluminadores pra dentro da Casa de Detençao. Juntos eles criaram um evento de gala nunca antes visto na então maior cadeia do hemisfério.
Desconfiados e receosos em participar de um evento de “bicha” os presos foram chegando ao antigo cinema do pavilhão 6. Enquanto isso, no camarim improvisado na sala onde funcionava a biblioteca espírita, 13 travestis eufóricos se montavam, com perucas coloridas, plumas, roupas incríveis e eram embelezadas por maquiadores profissionais. Os olhos delas brilhavam enquanto Sommer coordenava tudo como se estivesse prestes a desfilar na Paris Fashion Week.
Cerca de 800 pessoas aguardavam na platéia, entre convidados e presos, quando Rita Cadillac abriu o espetáculo com um show digno do rebolation, esquentando a maloqueirada para o que estava por vir. Também houve uma apresentação do grupo de Rap 509-E e um discurso do diretor. Em seguida as luzes se apagaram, a musica começou e as cortinas se abriram.
Logo no primeiro look, a cara amarrada dos presos deu lugar a sorrisos tímidos. Aos poucos os sorrisos viraram gargalhadas e aplausos entusiasmados. Os mesmos presos que as esculachavam e agrediam agora as aplaudiam e isso tem um valor gigantesco pra quem sofre preconceito por opção sexual.
O ponto alto foi quando a Chica, uma travesti negra, com silicone industrial mal aplicado nas maças do rosto e braços retalhados por cortes de gilete entrou vestida de noiva e segurando um buquê levando ao delírio a empolgada platéia.
Foi uma cena digna de um filme do Almodóvar, surreal e absurdamente genial. Nunca pensei que aquela idéia maluca pudesse dar certo, mas deu.
As risadas podiam ser ouvidas de longe nos mesmos corredores que apenas 7 anos antes foram palco do covarde massacre de 111 presos. Num lugar onde se respira tensão, aquela tarde serviu pra aliviar um pouco corações e mentes angustiados de gente que já não tinha esperança nenhuma.
No dia seguinte, tudo voltou ao normal no Carandiru. Os travestis continuaram sua rotina de escória da cadeia, mas agora, lá no fundo, com um leve e sutil sorriso de vingança".
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