A gente se acostuma a morar em apartamento de fundos
e a não ter outra vista que não seja as janelas ao redor.
E porque não tem vista,
logo se acostuma a não olhar para fora.
E porque não olha para fora,
logo se acostuma não abrir de todo as cortinas.
E porque não abre as cortinas,
logo se acostuma a acender mais cedo a luz.
E a medida que se acostuma,
esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.
A gente se acostuma a esperar o dia inteiro
e ouvir no telefone: hoje não posso ir.
A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta.
A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.
Se acostuma a não ouvir passarinho,
a não ter galo de madrugada,
a temer a hidrofobia dos cães,
a não colher fruta no pé,
a não ter sequer uma planta.
A gente se acostuma a coisas demais para não sofrer.
Em doses pequenas, tentando não perceber,
vai se afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá.
Se o cinema está cheio,
a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço.
Se a praia está contaminada,
a gente só molha os pés e sua no resto do corpo.
Se o trabalho está duro,
a gente se consola pensando no fim de semana.
E se no fim de semana não há muito o que fazer,
a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito
porque tem sempre sono atrasado.
A gente se acostuma para não se ralar na aspereza,
para preservar a pele.
Se acostuma para evitar feridas, sangramentos,
para esquivar-se da faca e da baioneta,
para poupar o peito.
A gente se acostuma para poupar a vida
que aos poucos se gasta e,
que gasta, de tanto acostumar, se perde de si mesma.
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