Saio de férias hoje e, se tudo correr como previsto, só volto a aparecer por aqui no dia 20 de fevereiro. Ou então nunca mais, se desta feita eu conseguir que Vavá Major me ensine a não fazer nada. Major era peixeiro com banca estabelecida no Mercado, mas, assim que completou o tempo mínimo, requereu aposentadoria, vendeu a banca e voltou para casa, no Alto de Santo Antônio, onde agora se dedica a não fazer nada. A primeira vez em que o vi depois dessa mudança foi numa visita que ele me fez. Não, não era verdade o que diziam, não era verdade que ele não fizesse mais absolutamente nada. Naquela hora mesmo, estava me visitando, isso não era fazer alguma coisa?
- Esse povo daqui fala muito e é descompreendido da filosofia, não aparece um bom filósofo aqui desde que Cuiuba morreu - disse ele. - Eu sinto falta.
- Ah, eu não sabia que tinha filosofia nessa sua situação.
- Mas é claro! Eu posso não ter estudo, mas sempre escutei os antigos. Então minha filosofia não é não fazer nada, isso é intriga dos invejosos. Minha filosofia é sem labuta e sem aporrinhação.
- Esse é seu lema?
- É o meu lema filosófico. Cada coisa que aparece para eu fazer, eu examino e faço duas perguntas. Dá labuta? Dá aporrinhação? Deu labuta ou deu aporrinhação, não é comigo, estou aposentado. Quem quiser que vá labutar e se aporrinhar, eu não.
- Mas, Major, me disseram que você não topa nem jogar dominó.
- Dá aporrinhação! Você quer mais aporrinhação do que esses jogadores que ficam contando lorota depois que ganharam na sorte? E perder também aporrinha, estou fora.
Confessei-me seduzido pela filosofia dele e pela competência com que ele a aplica. Não é coisa simples, observou ele, requer muito descortino e atenção, porque a todo momento aparecem labuta ou aporrinhação, onde menos se espera. Na dúvida, o melhor é não topar atividade nenhuma sem cuidadoso exame e muito tempo para ponderar, além de olho vivo onde quer que se ande. Não tive como não concordar e perguntei a ele se não era possível me passar sua experiência, me dar algumas aulas, por assim dizer. Negativo, disse ele, para se despedir afavelmente logo em seguida. A amizade continua firme, mas esse negócio de aula dá labuta.
Este ano não vou insistir em que ele me dê as aulas, mas vou ver se consigo permissão para acompanhar sua performance enquanto ele não faz nada. Mas talvez ele ache que, mesmo que não dê labuta, pode dar aporrinhação, de maneira que estou jogando com algumas opções. O leque é grande e primeiro me ocorreu saber de Xepa se sua canoa nova já chegou e, caso afirmativo, se vai dar para a gente sair e fazer uma pescariazinha de tatu, como ele garantiu que tem acontecido na ilha. Com esse último, que foi Lozinho de Maroca que fisgou, já são seis tatus somente este ano, me informou ele. Mas não, infelizmente ele não podia me levar para pescar uns tatus com ele, agora o IBAMA já está alerta e quem ferrar tatu vai preso, esse IBAMA vive atrasando o progresso.
O IBAMA, porém, não se mete nas múltiplas atividades de Zecamunista, que, neste momento, está começando a pôr em prática seus planos de valorização da terceira idade. Admito que, de início, desconfiei disso, em vista do rumoroso episódio da viúva Gonçalves. A viúva Gonçalves, bem madura herdeira de um próspero comendador, foi durante muito tempo cortejada por Zeca, que alegava estar fazendo um trabalho de conscientização com ela, destinado a convertê-la, segundo palavras dele, em mais uma burguesa progressista. Esse trabalho de conscientização, segundo contam, se realizava basicamente à noite, na casa da viúva e, aparentemente, era empresa muito esforçada, porque dizem que, nas horas das lições, o silêncio em torno se enchia de ais, uis e gemidos variados, certamente oriundos da contundência com que Zeca expunha suas ideias. Há quem afirme maldosamente que ela financiava as expedições de pôquer dele, mas não se tem confirmação, cala-te, boca, não adianta revolver o passado, nada nele desmerece as iniciativas de Zeca para a terceira idade. Aliás, a designação que ele usa é outra.
- Terceira idade, não! - bradou ele no bar de Espanha. - Não admito essa frescura, isso é deboche!
- Mas todo mundo usa essa expressão.
- Todo mundo é a massa alienada pela propaganda capitalista! Terceira idade, não! Pior ainda, melhor idade! E a pior de todas: feliz idade! Eu passo a foice e o martelo no primeiro que me disser que eu estou na feliz idade! Se não querem dizer velhice, usem o adjetivo certo, quem já entrou nessa idade sabe qual é.
- Eu não sei.
- Bote a mão na consciência, só pode ser indigna idade! Aí eu aceito, é a expressão da verdade e qualquer velho coroca jura pelo seu fraldão que é o certo. Indigna idade, isso é o que ela é, tem que reconhecer a realidade e eu estou promovendo esse reconhecimento. Amanhã mesmo chega um ônibus cheio de mulher-dama, proletárias do amor que eu contratei em Salvador. É para a Primeira Semana pela Defesa da Indigna Idade. A única maneira de encarar a indigna idade é cometer indignidades. Você é casado, mas eu não tenho nada com as instituições burguesas, sou pelo amor livre. Vai querer aí um vale-rapariga?
- Não, obrigado - disse eu. - Dá labuta.
* Em 'Já podeis da pátria filhos', Ubaldo subverte a gramática tradicional para falar de pescadores exagerados, festas de debutantes, turistas assanhadas, meninos brincando de médico, políticos corruptos e amantes do futebol que não descartam uma ou outra safadeza para vencer uma partida. São relatos em que o autor conta casos insólitos da ilha de Itaparica e sua gente. São histórias cômicas, fantasiosas e por vezes líricas, de um observador dos modos e costumes do povo brasileiro. No conto que abre o volume, 'Alandelão', um touro reprodutor francês, que 'vivia todo ventilado e cheio de nove-horas', é levado ao ar livre por peões ansiosos pelo momento em que ele vai deixar a vida de inseminações artificiais de lado para se entreter com uma vaca no pasto. Em 'O santo que não acreditava em Deus', que deu origem ao filme 'Deus é brasileiro', um pescador se encontra com o Criador. No texto que dá título ao livro, Ubaldo narra uma pelada de futebol entre locais e estrangeiros. E, em 'Era um dia diferente quando se matava porco', um menino acompanha o pai no sacrifício de uma porca e procura se manter firme, apesar da violência e do sangue.
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