NO COMEÇO de agosto, jovens londrinos foram às ruas (e aos saques) apoderando-se de bugiganga eletrônica e roupa de marca; mencionei esse fato na coluna da semana passada.
Alguns leitores entenderam que eu desaprovava a revolta pela futilidade de seus motivos, um pouco como Luiz Felipe Pondé ao apresentar a turba como um recém-nascido MSI, Movimento dos sem iPad (na Folha de 22 de agosto).
Os mesmos leitores atribuíram aos manifestantes uma motivação "mais nobre". Por exemplo, @blogsessao, no Twitter, afirmou que os jovens não arriscariam suas vidas por bugiganga: eles deviam estar protestando contra desemprego, violência policial etc. -coisas mais sérias.
Pois bem, contrariamente a @blogsessao, acho que os jovens queriam mesmo os objetos que roubaram. E, contrariamente a Pondé (e também a @blogsessao), acho que os objetos que eles roubaram não têm nada de fútil: na modernidade, as aparências e os objetos de consumo são atributos constitutivos da subjetividade e da liberdade. Explico.
Até o século 18, um nobre poderia chegar a uma festa a pé e, mesmo assim, ele seria recebido com a honra devida à sua condição. Seus eventuais apetrechos (roupa, aparato) eram seu direito exclusivo (alguém que não fosse nobre não poderia usar os mesmos), mas a honra era devida ao seu berço, não ao seu aparato.
Hoje, chegando a uma boate, seu carro, seu estilo ou sua roupa podem fazer que você seja admitido ou barrado. Será que nos tornamos escravos dos objetos e do aparato?
Ao contrário, os objetos e o aparato são a condição de uma liberdade inédita, porque, hoje, ninguém será barrado na festa porque nasceu num berço humilde -só se ele tiver escolhido o aparato errado.
Alguém dirá que o aparato custa dinheiro: os direitos conferidos pela riqueza teriam substituído os conferidos por nascença. É possível, mas, em tese, todos podem enriquecer e, hoje, o estilo vale tanto quanto a riqueza (há festas nas quais só se entra de meia furada e calçado ortopédico velho).
Mas voltemos a algo que talvez não tenha ficado claro quando falei do aparato que era direito exclusivo do nobre. Com a modernidade, acabaram as leis suntuárias, que serviam para colocar ordem nos costumes e na sociedade. Por exemplo, as prostitutas deviam se vestir de um certo jeito -sempre, não só no exercício da profissão. E os artesãos e comerciantes não podiam imitar as vestimentas e os aparatos dos nobres. Desde a Idade Média, essas leis eram uma tentativa de a nobreza frear o consumo e o prestígio dos burgueses, que estavam ficando cada vez mais influentes. Ou seja, eram maneiras de resistir a um mundo em que o acesso ao poder não dependeria mais da nascença.
Em suma, objetos, aparato e aparências, em sua suposta futilidade, são a chave de nossa liberdade para circular na hierarquia social, entrar em grupos diferentes do grupo no qual nascemos.
Alguém dirá: tudo isso é muito bom, mas será que a necessidade não deveria ser mais importante do que as futilidades de aparato e aparência, por mais que elas nos prometam liberdade?
Nos anos 70, na Índia, numa campanha de controle da natalidade, os indigentes podiam escolher: em troca de sua esterilização, receberiam um saco de arroz ou um rádio de pilha. Muitos escolhiam o rádio (embora não tivessem chance alguma de, um dia, comprar pilhas novas).
Hoje, no Rajastão, entre os que aceitam a esterilização, são sorteados televisores, liquidificadores, motocicletas, e um Tata Nano, o carro mais barato do mundo ("BBC Mobile", 1/07/11).
Tenho carinho pelos indigentes que preferiam o rádio e hoje sonham com o carro: a cultura à qual pertenço começa quando ter desejos e ser reconhecido pelos outros se torna tão importante quanto silenciar o ronco da fome.
Conclusão: lugar de saqueador é na delegacia. Agora, quem rouba iPads não é mais culpado do que aquele que rouba pão, porque, numa sociedade livre, em que a vida depende tanto do olhar dos outros quanto de mil calorias diárias, as pretensas "futilidades" (objetos de consumo e de aparato) são gênero de primeira necessidade, parte da cesta básica.
Para ler mais: o clássico "The Social Life of Things", de A. Appadurai (Cambridge University Press). Acaba de sair o ótimo "Sumptuary Law in Italy 1200-1500", de C. Kovesi Killerby (Oxford).
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