Quando contei em casa que vinha para o Egito, a reação foi a mesma que tiveram os leitores que me escreveram depois da crônica da semana passada: “Você é doida!” Mas o mundo é todo ele um lugar de risco. Raios caem do céu, bueiros explodem no meio da rua, buracos se abrem inesperadamente sob os nossos pés. A quem faz questão de cem por cento de segurança recomendo nem sair de casa — e, ainda assim, tomando muito cuidado no banheiro, para não escorregar no piso molhado.
A chapa está quente no Egito? Sim, está — mas é perfeitamente possível evitar tumultos. Todos os egípcios sabem quando e onde são feitas manifestações, ou elas obviamente não reuniriam tanta gente. O Egito é um caos? Com certeza — mas, em compensação, oferece aos visitantes a visão única de uma das mais antigas civilizações do planeta. Além disso, o próprio caos pode ser muito atraente. Cairo e Alexandria vivem com grande intensidade em seus cenários pós-apocalípticos. São cidades densas, orientais, cheias de sons, cheiros e visões peculiares. Dão de dez a zero em qualquer cantão suiço em termos de interesse e de vitalidade.
O prestígio do Egito como destino turístisco, porém, está mesmo perto de zero, o que é uma lástima. Entrar nos túmulos do Vale dos Reis, por exemplo, e ver, nas paredes, a arte extraordinária que lá deixaram os bípedes que viveram há cinco mil anos, é uma experiência inesquecível. Este mundo do além, que esteve mergulhando durante milênios na longa noite dos tempos, brilha como se tivesse sido pintado ontem. Nas figuras humanas, que tinham que obedecer a padrões fixos de representação, não há muito espaço para variação; mas os bichos, humildes e livres dos mandamentos do cânone artístico, são surpreendentes. Há cobras lindas, peixes em movimento, pássaros tão delicados e perfeitos que parecem retratos dos seus descendentes que ainda voam lá fora.
Ao contrário do que eu imaginava, não há nada de lúgubre nas tumbas. Nelas estão reproduzidas cenas da vida dos seus ocupantes e cenas da sua suposta vida após a morte. Precisei visitar esses túmulos tão coloridos para perceber o quanto os antigos egípcios gostavam de viver — e, sobretudo, para descobrir que a palavra chave da sua cultura não era morte, como sempre me disseram, mas vida.
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O contraste da arte faraônica com a arte funerária cristã não podia ser mais gritante. Não vi uma única caveira nos túmulos ou nos templos; não vi esqueletos, muito menos os sinistros cadáveres em decomposição que tanto sucesso fizeram na estatuária fúnebre da Europa medieval. Ao contrário: vi velhos faraós representados na flor da idade, para melhor aproveitar a eternidade; vi o exorcismo constante da morte nas vigorosas manifestações de vida. Os egípcios não precisavam de uma visão artificial de paraíso. Para eles, o mundo estava muito bom como estava, e era numa continuação dele que pretendiam viver para sempre.
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Grandes milagres aconteceram no Egito, e eles estão à disposição de quem quiser admirá-los. Há a preservação inacreditável de tantas maravilhas; há o renascimento dos hieroglifos a partir do momento em que Champollion os decifrou, quando vozes que permaneceram caladas durante milênios subitamente se fizeram ouvir de novo. Não sei vocês, mas eu fico arrepiada dos pés à cabeça quando penso nisso. Há também mistérios para todos os gostos. Um dos que mais me impressionam é como a arte faraônica permaneceu (quase) inalterada durante tanto tempo.
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Se há alguém que precisa de novos milagres são os egípcios de hoje. Muitos milagres! As suas grandes cidades têm tantos problemas que torná-las minimamente funcionais requer um Champollion do urbanismo. A sua situação política está tão mal parada que só uma reencarnação de Narmer, o faraó que unificou o Egito antigo, para dar solução. Enquanto isso não acontece, o turismo, que é uma das principais fontes de renda do país, desaparece a olhos vistos.
Quando fui a Sakara os únicos visitantes das mastabas e da famosa pirâmide eramos eu e os meus amigos. No Museu Egípcio a maioria das salas era só nossa; na sala do tesouro de Tutancamon — que causou filas de dar volta ao quarteirão quando foi exibido em Nova York — não havia quinze pessoas. Dos mais de 300 barcos que cruzam o Nilo entre Luxor e Aswan, apenas 20 estão em funcionamento, e mesmo assim com lotação mínima. No nosso barco, que comporta 80 passageiros, havia 30, e a tripulação estava muito contente porque, duas semanas antes, havia apenas dois. Os hotéis e restaurantes estão vazios; as lojas de lembrancinhas não estão vendendo nada. A queda do balão em Luxor foi uma tragédia em todos os sentidos, e matou não só os pobres turistas que nele voavam, mas todo um ramo da indústria.
Nos templos vazios, que visitamos sem atropelos, nosso guia observava, desconsolado: “No tempo do turismo, havia filas enormes para visitar essa sala…” Ele e todos os que trabalham na área têm perfeita consciência de que esse “tempo do turismo” não volta tão cedo, e não sabem o que fazer.
É de cortar o coração. Muita vontade de fazer oferendas para Isis, Osiris, Horus, Hator e todos os deuses do antigo panteão para que acordem do seu sono milenar e façam o grande milagre e imenso favor de trazer os viajantes de volta.
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