quinta-feira, 11 de julho de 2013
No umbigo do mundo. Cora Ronai.
Estou há dois dias em Nova York e, além de andar abestada olhando para cima e para os lados, ainda não fiz nada. Tenho a maior admiração pelos amigos que vêm para cá com a agenda pronta, com restaurantes reservados, entradas para óperas e concertos compradas, exposições anotadas no caderninho. Já tentei fazer isso algumas vezes e nunca deu certo: caí em refeições pantagruélicas com boca de saladinha, fui a musicais quando questionava o sentido da vida, vi uma exposição cubista no auge da minha paixão por Tiziano. Claro que, mais tarde, por ocasião da retrospectiva do velho veneziano, senti saudades dos cubistas. Decidi, então, que Nova York seria para mim, dali para a frente, um dia de cada vez.
Dá certo e não dá. Dá porque nunca mais fiz nada que não tivesse vontade de fazer naquela hora. Não dá porque porque a cidade é tão divertida em si mesma que, na maioria das vezes, não tenho vontade de fazer outra coisa a não ser andar pelas ruas. Pego o primeiro ônibus que passa, desco, pego outro, exploro áreas que não conheço, traço um cachorro quente numa barraquinha, ouço músicos nas praças e no metrô. Acabo zanzando sem destino até à exaustão e chego ao hotel no bagaço, pronta para um bom banho, um bom livro, uma boa cama. O teatro fica para as calendas, o cinema para a volta, os museus e as galerias para os dias de chuva.
Dessa vez há uma exposição dos desenhos de Edward Hopper no Whitney que não quero perder; vai ser uma forma indireta de me encontrar com o Millôrzinho, que gostava de Hopper e que teria ficado feliz em ver esses desenhos quase desconhecidos.
o O o
A minha agenda nova-iorquina se complica ainda por outro fator: adoro hotéis. Gosto de ler e escrever sabendo uma cidade que não é minha lá fora; gosto de pedir comida no quarto; gosto de acordar tarde no meio de uma montanha de travesseiros.
Uma vez, na Índia, sentou-se ao meu lado, no trem, uma americana mais ou menos da minha idade, ou seja: uma senhora mais para avó do que para mochileira. Conversa vai conversa vem, caímos no assunto hotel. Eu estava encantada com os ótimos negócios que vinha fazendo pelo Rajastão, onde conseguia quartos das mil e uma noites em antigos palácios de marajás pelo equivalente a cinquenta dólares.
– Cinquenta dólares?! — exclamou a minha interlocutora, genuinamente chocada. — Mas você consegue quartos com banheiro por menos de quinze dólares em qualquer lugar! Hotel é só para dormir!
Não para mim. Foi difícil explicar a ela as viagens incríveis que aqueles palácios me inspiravam; mais difícil ainda foi convencê-la de que não fumo, não bebo nem uso drogas que não sejam vendidas em farmácia. Ela também não conseguiu me convencer das vantagens de economizar numa das melhores partes da viagem; mas o mundo é assim, vasto, variado, com gente de todo o tipo.
o O o
Meu hotel favorito em Nova York costumava ser o Algonquin, em cujo restaurante se reunia a turma da New Yorker em meados do século passado. Localização ótima, móveis elegantes, ambiente aconchegante. E, illo tempore, preços razoáveis. Esse último detalhe mudou drasticamente depois que o Algonquin passou por uma reforma milionária e reabriu como parte da cadeira Marriott. Mas, na época em que a diária ainda estava ao alcance de jornalistas, o que me atraía de verdade era Matilda, a gata da casa. Por causa dela eu nem me incomodava com o tamanho dos quartos, minúsculos, já que sempre descia para ler ou trabalhar no lobby, onde tirava casquinhas do quadrúpede mais mimado da hotelaria mundial.
Todo mundo que chegava da rua trazia uma coisinha para a Matilda, que aceitava os mimos e as festinhas como uma rainha aceita a reverência dos seus súditos. Ela tinha sua própria mobília miúda muito engraçadinha mas gostava mesmo era dos sofás e das poltronas: escolhia sempre o melhor lugar, e não era fácil convencê-la a abrir espaço, até porque os outros hospédes do salão viam essa ousadia de cara feia.
O Algonquin sempre teve gatos. Reza a lenda que, em 1930, um bichinho esfomeado entrou pedindo comida. Acabou ficando e fazendo amizade com os famosos frequentadores da casa. John Barrymore sugeriu que se chamasse Hamlet e, desde então, sempre que o felino em residência é macho, tem este nome; sempre que é fêmea, é xará da minha branquinha. Não conheci nenhum Hamlet, mas as duas Matildas que peguei eram muito tranquilas e altivas. Uma ainda está lá, mas foi vítima da burocracia: algum idiota reclamou com a vigilância sanitária e hoje a pobrezinha não pode mais circular pelos salões: fica restrita à recepção.
O mundo está ficando muito chato, sinceramente.
o O o
Os dias estão quentes e ensolarados. No fim da tarde, como em Belém do Pará, bate uma chuva, mas é só para dar aos turistas a oportunidade de fotografar o entardecer com o asfalto molhado, refletindo o vermelho dos freios dos carros e as primeiras luzes das lojas e das ruas, que começam a se acender. Hoje, lá pelas oito, oito e meia, quando os últimos raios de sol pintaram de rosa umas nuvens que estavam de bobeira sobre o Hudson, eu senti um aperto enorme no peito e me dei conta de como estava com saudade daqui.
I love New York.
Mesmo.
(O Globo, Segundo Caderno, 11.7.2013)
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