sexta-feira, 8 de junho de 2012

Caminhos Cruzados: João Gilberto, Guimarães Rosa e a poética do Brasil!





RESUMO A série de textos que a "Ilustríssima" adianta em primeira mão apresenta trecho de ensaio sobre as conexões poéticas entre João Gilberto e João Guimarães Rosa. O texto integra o livro "João Gilberto", organizado por Walter Garcia, alentada fortuna crítica sobre o músico baiano que a Cosac Naify lança nesta semana.

HELOISA MARIA MURGEL STARLING
ILUSTRAÇÃO LUCAS ARRUDA


DURANTE UM EVENTO ocorrido na Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), em 2009, Chico Buarque causou espanto e surpresa na plateia com uma declaração inesperada:
"Não sei se Guimarães Rosa é melhor que João Gilberto. Eu não sei".
A interrogação irresolvida de Chico pode até gerar estranheza, acostumados que ainda estamos ao contraponto entre a chamada alta literatura e as criações populares, entre o culto à soberania da abordagem literária em sua inesgotabilidade de sentido e de permanência e o nosso hábito meio distraído de fazer da canção o complemento natural da atividade cotidiana de viver -mas, ao menos no caso do Brasil moderno, essa interrogação faz todo sentido.
Chico Buarque tem bons motivos para reafirmar a equivalência entre a linguagem literária escrita e a cantada no Brasil. Ainda assim, é possível que a lembrança dos nomes de Guimarães Rosa e João Gilberto seja consequência principalmente do reconhecimento de suas próprias e decisivas influências estéticas.
Afinal, Chico já afirmou diversas vezes haver decidido fazer canções ao ouvir a gravação de "Chega de Saudade", por João Gilberto, em 1958; como também já afirmou ser Guimarães Rosa o autor diante do qual sentiu vontade de fazer literatura: "Foi uma descoberta. Durante um bom tempo, queria escrever à la Guimarães Rosa".





É certo que a partir da passagem para a década de 1960, centenas de jovens em todo o país passaram a compartilhar do mesmo susto e do mesmo encantamento radical com o violão e o canto de João Gilberto e com a potência literária da prosa de Guimarães Rosa. Mas é certo também que, ao menos à primeira vista, os mundos da linguagem criados por eles parecem estar tão distanciados e incomunicáveis, que é inevitável supor a persistência do crivo de uma sutil diferença de tom e de valor.
O terreno é certamente escorregadio. Se de fato for inequívoca a disparidade entre o lugar precário ocupado pela canção e a onipresença do texto literário, então há pouco que fazer: afinal, as possibilidades de comunicação só podem ocorrer em um diálogo de gêneros correspondentes.
Nesse cenário, e embora João Gilberto e Guimarães Rosa tenham composto o essencial de sua obra ao mesmo tempo e no mesmo contexto histórico, não existe chance de correspondência entre eles -exceto, talvez, duas.

PERFECCIONISMO Na primeira, ambos dividiram um perfeccionismo capaz de levar o produto final muito além das exigências do mercado -e, reza a lenda, o editor José Olympio teria destruído as matrizes de "Sagarana", derretendo o chumbo dos linotipos a fim de impedir as obsessivas revisões a que Guimarães Rosa submetia seus textos.
Na segunda, os dois esculpiram, cada um a seu modo, a substância plástica muitíssimo elaborada de uma "persona" criada para dar-lhes uma feição modelada do real e devolvê-la ao público. Com o tempo, os admiradores de ambos passaram a agregar a essas "personas" certa aura de santidade, diversas manias, um sem-número de anedotas e alguma intimidade com o sobrenatural.





No mais, sabe-se que Guimarães Rosa mantinha um ouvido atento ao som do rádio, ao ritmo pulado das marchinhas carnavalescas e ao repertório das grandes cantoras; adorava a voz de Ademilde Fonseca, Carmélia Alves, Emilinha Borba.
Fiel ao repertório da bossa nova, João Gilberto foi sempre enfático ao sublinhar sua profunda admiração por Carlos Drummond de Andrade -e, dizem, a admiração é tamanha que ele é capaz de recitar o poema "Morte do Leiteiro" a um interlocutor desavisado, em meio às suas longas maratonas por telefone madrugada afora.
Contudo, como diria Guimarães Rosa a respeito dos próprios livros, a frase de Chico Buarque "também pode valer pelo muito que nela não deveu caber". No projeto literário de Rosa, isso significava perceber que o potencial da linguagem -e, cabe acrescentar, potencial presente na linguagem escrita e cantada- como meio de comunicação é duplo: ela tanto se afirma como "tradizione", isto é, como ponto de transmissão e interpretação de mensagens entre o passado e o presente, quanto cria combinações num mundo futuro.
Essas combinações só revelam seus múltiplos sentidos e suas perspectivas ocultas a partir de uma chave própria: uma espécie de trabalho de leitura a posteriori de uma ação -um ato de fala- cuja legibilidade foi construída, mas foi também perdida, em algum lugar, ao longo do tempo de duração da obra.
Não parece ser, portanto, por acaso, que entre a voz e o violão de João Gilberto e a escritura de Guimarães Rosa algo do muito que nessa relação não deveu caber suponha, desde o início, uma ampla reserva de correspondências, de semelhanças extrassensíveis que se encontram, se trocam e se completam no campo da linguagem.


PROJETOS Mais precisamente, essa é uma relação que se estabelece entre dois projetos de linguagem -escrita e cantada- que partem de uma mesma e dupla demanda: a afirmação de uma língua poética ainda não saturada, cujo desenvolvimento ainda não se deteve e que ainda é uma língua "além do bem e do mal", nos termos de Guimarães Rosa; uma língua poética que também se firma numa identidade, numa maneira de viver em comum, como provavelmente acrescentaria João Gilberto.
O empreendimento literário de Guimarães Rosa implicava um método: a utilização de cada palavra como se ela houvesse acabado de nascer, para limpá-la das impurezas da linguagem cotidiana e reduzi-la a seu sentido -e som- original.
Já o projeto de linguagem de João Gilberto está ancorado em duas pontas: uma, o investimento rítmico a partir do qual se organizam todos os outros elementos de sua obra; a outra ponta, os recursos para a criação de uma maneira de cantar que busca realizar uma análise interpretativa da canção de maneira radical, explorando aquilo que seu compositor deixou para trás.
Evidentemente, a dosagem e o controle das duas pontas desse projeto dependem de um completo domínio da linguagem. Nos termos de João Gilberto, "música é som. E som é voz, instrumento".
Começa nessa definição um jogo de equilíbrio finamente articulado por ele entre o ritmo do canto e o ritmo do violão; um jogo em que cada sílaba cantada ocupa um lugar milimetricamente exato com os ataques de acorde e os baixos do violão. Trata-se, nesse caso, tanto de evitar deixar o violão "falando sozinho lá embaixo", como ele mesmo diz, quanto de garantir "que a voz se encaixe no violão com a precisão de um golpe de caratê, e a letra não perca sua coerência poética".
A fala é o lugar histórico onde a palavra nasce; o canto, o momento em que esse nascimento se atualiza e a palavra cintila por um instante. Por conta disso, diria João Gilberto, "as palavras devem ser pronunciadas da forma mais natural possível, como se estivesse conversando".




O seu canto é só isso: uma conversa cantada que propõe uma conciliação rítmica no interior da canção, entre o ritmo da fala, da música e do argumento que organiza a narrativa -e que, a partir dos anos 1950, e contando com a sua contribuição, também passou a incluir a forma icônica como recurso estilístico associado ao comportamento temático da melodia.
O personagem central de "Grande Sertão: Veredas", o jagunço Riobaldo Tatarana, costumava dizer que nem tudo no sertão pode ser nomeado, mas "tudo, nesta vida, é muito cantável".
A arte de produzir um jeito de cantar em que cada palavra suporta o peso de seu significado e a consistência de sua sonoridade talvez seja outro indício dos processos que engendram as semelhanças não sensíveis por onde nasce o diálogo de João Gilberto com Guimarães Rosa.
Afinal, vale insistir, o que não pode ser nomeado é cantável: por meio do canto falado de João Gilberto, brota invariavelmente a constelação de significados contida nos sons de uma frase em que as sílabas ocupam um lugar preciso no comportamento temático da melodia -como se eles lá estivessem escondidos desde sempre à espera desse canto.
No interior da ficção de Guimarães Rosa, a longa conversa entre a palavra e o som busca executar um procedimento análogo: revelar a mesma constelação de significados que habita os extremos da experiência da linguagem.



BRASIL A relação de João Gilberto com o Brasil é análoga à de Guimarães Rosa: pessoal, intransferível e imaginada. Como ele mesmo tentou explicar, ao recordar, 30 anos depois, sua participação ao lado de Tom Jobim, no famoso "Concerto da Bossa Nova", no Carnegie Hall, em Nova York, brasilidade provém da alma, carrega a marca dos afetos, traduz uma projeção do desejo: "Nós ali, fazendo música. Nós ali, representando o Brasil. A gente querendo homenagear o Brasil, a gente querendo o bem do Brasil".
O "Concerto da Bossa Nova" aconteceu em novembro de 1962 e, de certo modo, marcou o final do tempo da obra que João Gilberto compartilhou com Guimarães Rosa. Seis anos antes, quando esse tempo teve início, em 1956, o país vislumbrava a oportunidade de realização do que se pode chamar de uma utopia brasileira.
Em maio desse ano, Juscelino Kubitschek, recém-empossado na presidência da República, sonhou inventar as bases para que a nossa sociedade se tornasse capaz de superar as marcas e os estigmas do subdesenvolvimento: avançada, comprometida com um amplo programa modernizador e por consequência, capaz de produzir os mecanismos de integração do interior ao centro, do Brasil ao mundo, da tradição ao moderno.
Juscelino gostava de música, tinha "mania de escritor", obsessão pela ideia de progresso e encantamento por tudo que era novo e moderno. A utopia brasileira que alimentou seu governo estava embalada por duas características principais: propunha o projeto de um Brasil possível como oportunidade a ser necessariamente alcançada; sustentava-se na crença de que sua concretização dependia da vontade do Estado e do desejo coletivo de um povo que, enfim, teria encontrado o seu lugar e o seu destino.



PASSADO E FUTURO Guimarães Rosa tomou o passado como o lugar de uma reflexão sobre uma experiência vivida; em João Gilberto, a recordação é uma estratégia de acesso ao conhecimento que lhe permite experimentar novos caminhos -visível, por exemplo, nas recriações que realizou de velhos sambas das décadas de 1930 e 1940 e quase completamente esquecidos. Nos dois projetos de linguagem, porém, está implícita ou explícita a percepção do traço ambíguo que funda a utopia brasileira dos anos 1950.
Tanto para Guimarães Rosa quanto para João Gilberto, a escolha não é entre o antigo e o moderno; é entre aquilo que está prestes a desaparecer e o que ele ilumina no instante de seu desaparecimento: a promessa que não se cumpriu, o seu outro e seu contrário.



O projeto literário de Guimarães Rosa fez o registro detalhado das ruínas, fragmentos, detritos, resíduos de tudo aquilo que o Brasil modernizado pelo desenvolvimentismo de Kubitschek não conseguiu mais aproveitar e a República descartou por improdutivo, supérfluo, inútil: a massa compacta de vaqueiros, tropeiros, jagunços, garimpeiros, romeiros, roceiros, caipiras, prostitutas, índios, velhos, mendigos, loucos, doentes, aleijados, idiotas -uma gente que não vai a parte alguma, ninguém os reivindica, não são ninguém.
Apenas uma multidão de depauperados e miseráveis que se desloca, sem parar, saindo do sertão, no rumo das grandes cidades brasileiras que simbolizam sua última chance de escape de um mundo de necessidades e carências absurdas -e descobrem, ao fim e ao cabo, a completa inutilidade desse deslocamento.
É certo que a voz e o violão de João Gilberto também se mobilizaram no esforço de tentar capturar a claridade poética que brilha no instante em que algo se perde do Brasil e é tragado, como diria José Miguel Wisnik, por essa utopia cega que devassa e devasta - e se apresenta carregada de exuberância e violência. Mas, diferentemente do percurso de Guimarães Rosa, as canções que ele gravou projetam no futuro, de modo muito eloquente, em seus motivos melódicos e poéticos, percursos alternativos de construção de subjetividade dentro dos processos de modernização do Brasil, a partir de um conjunto de pequenos e delicados valores do mundo privado.





Há quem diga, com muita razão, que, física e musicalmente, João Gilberto não sai de casa - um concerto seu, mesmo em um estádio, mantém algo de uma reunião entre amigos, numa sala de apartamento. Não por acaso. A intuição poética do seu projeto de linguagem é precisamente esta: preservar, num sentido muito real, a profundidade de uma parte do mundo que, uma vez perdida, torna inteiramente superficial a vida de cada um de nós.
A interpretação de João Gilberto, como as canções de Tom Jobim, garante aos brasileiros a sombra de um refúgio -um lugar só nosso, mas dotado de qualidade muito específica que faz emergir, da meia-luz que ilumina nossa vida privada e íntima, valores, sentimentos e ideias, e deriva deles a base de formação de nossas condutas individuais e coletivas.
O jagunço Riobaldo Tatarana costumava dizer que "por cativa em seu destinozinho de chão, é que árvore abre tantos braços". São muitos os braços do Brasil. Graças a eles, o país se equilibra entre esperança e abandono; mas estão abertos por um triz, pela linguagem irisada da voz e do violão de João Gilberto e da ficção de João Guimarães Rosa.

Nota do editor
Nesta versão editada do ensaio, foram suprimidas as notas de rodapé, quase todas de referências bibliográficas.

Da Folha de São Paulo




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