domingo, 6 de maio de 2012

Livro e filme resgatam Sabina Spielrein, que influenciou trabalhos de Jung e Freud









É normal hoje em conversas entre amigos se falar em “inconsciente” e “ato falho”. Incorporados pelo senso comum, esses conceitos estão na raiz da psicanálise, movimento que revolucionou o estudo da psiquê humana. Seu criador, Sigmund Freud, também caiu na boca do povo — quem nunca fez um comentário como “Freud explica?” Outros nomes também receberam o devido reconhecimento, como Carl Gustav Jung e Alfred Adler. No entanto, uma mulher que teve papel fundamental no processo de difusão da psicanálise foi relegada ao esquecimento até a década de 70, quando cartas e diários foram encontrados e publicados pelo italiano Aldo Carotenuto. Agora, o século XXI parece querer pagar a dívida da História com Sabina Spielrein.

Além do filme “Um método perigoso”, de David Cronenberg, em cartaz nos cinemas, documentários, livros e peças teatrais lançados recentemente contam a história da russa que, de paciente experimental da psicanálise, tornou-se uma psicanalista importante que muito contribuiu para o movimento. O livro “Sabina Spielrein: de Jung a Freud” (Ed. Civilização Brasileira), de Sabine Richebacherd, chega às livrarias no fim da próxima semana.

Enquanto formava-se médica e após a graduação, Sabina manteve uma intensa relação afetiva e intelectual com o médico que a tratou na clínica psiquiátrica Burghölzli, em Zurique, e depois a acompanhou na faculdade, Carl Gustav Jung. Mais tarde, ela se correspondeu com Freud e chegou a integrar o Círculo Psicanalítico de Viena. Quando, depois de casada, voltou à Rússia, introduziu a psicanálise no país, além de influenciar outros pensadores da época, incluindo o psicólogo e educador Jean Piaget, de quem ela tratou, e a também psicanalista Melanie Klein — cujos trabalhos foram fundamentais paraa compreensão do desenvolvimento da psiquê das crianças.

Durante os anos em que estiveram em contato, Sabina contribuiu com Jung para a formação de conceitos importantes e inspirou diversos trabalhos seus. A ideia do arquétipo da anima, por exemplo, que constitui o componente feminino da personalidade do homem — traços psicológicos formados ao longo da existência humana e sedimentados através das experiências masculinas com o sexo oposto — é bastante usada pelos junguianos até hoje e foi resultado de uma contribuição entre os dois. Segundo Jung, a anima é responsável pela qualidade da relação do homem com a mulher. Enquanto inconsciente, o contato com a anima se dá por meio de projeções. Ou seja, quando um homem se apaixona por uma mulher, ele está projetando a imagem do sexo oposto que ele tem dentro de si.

— A colaboração de Sabina com Jung deu origem à ideia de anima, um importante conceito junguiano, e da existência e dinâmica da contratransferência (o que o analista sente em resposta ao paciente e o que o analista projeta de seu próprio inconsciente para o paciente) — explica Coline Covington, psicanalista britânica e uma das autoras de “Sabina Spielrein: forgotten pioneer of psychoanalysis” (Sabina Spielrein: a pioneira esquecida da psicanálise, em tradução livre), livro lançado em 2003 nos EUA.







Em novembro de 1911, Sabina apresentou o trabalho pioneiro “A destruição como a causa do devir”. No texto, ela fala pela primeira vez sobre a ideia da pulsão de morte. Em 1920, Freud se refere ao conceito da jovem numa nota de rodapé em “Além do princípio do prazer”.

— Embora a visão de Freud sobre o instinto de morte seja diferente da de Sabina, ela sem dúvida estimulou seu pensamento sobre isso — diz Coline.

Pulsão sexual e contratransferência

O psicanalista e dramaturgo Antônio Quinet explica que Sabina foi a primeira pessoa a perceber que existe uma pulsão de destruição que faz parte da própria pulsão sexual, e a relacioná-la a uma destruição que leva à criação:

— Ela fala da destruição como fonte de vida, como fonte de algo do qual pode ser criado o novo. E Freud diz que a pulsão sexual precisa ter algo de agressivo para ser efetivada.

O que nos faz ir atrás do que desejamos vem da pulsão de morte. Quinet, cujo espetáculo “Abramse os histéricos!”, que retrata o nascimento da psicanálise, está em cartaz no Centro Cultural Justiça Federal, no Rio, lembra que Freud muito falava do prazer pela dor.

Sabina deu entrada na clínica psiquiátrica Burghölzli em 1904, aos 19 anos, com sintomas de histeria. Jovem de família rica, fluente em alemão, era a paciente ideal para Jung testar as ideias que surgiam em Viena, pelas mãos de Freud. Durante nove meses, ela foi tratada em sessões de análise e participou de testes de associação de palavras. Com uma boa evolução, logo foi considerada apta a começar o curso de medicina e chegou a ser assistente de Jung. Ela sofria com os traumas das agressões em casa. O pai costumava bater em todos os filhos e, com o tempo, Sabina admitiu para Jung que sentia prazer por meio da dor.



Sabina foi a âncora de aproximação entre Jung e Freud. O primeiro escreveu para o médico em Viena pedindo conselhos sobre a jovem que estava tratando. Anos mais tarde, no entanto, ela também acabou por inspirar uma das discórdias que culminaram no rompimento dos dois. Quando Sabina estava terminando seus estudos, começaram a surgir rumores sobre seu envolvimento
amoroso com Jung. As correspondências e diários de Sabina descobertos em 1977 em Genebra indicam a existência de uma relação muito próxima entre os dois e deixam clara a paixão dela pelo médico. Jung, no entanto, escreve uma carta para Freud negando o romance com a paciente. E ela toma a mesma atitude, correspondendo-se com o médico em Viena, inicialmente falando de Jung, mas estendendo a troca de cartas a discussões científicas.

O comportamento do médico suíço em relação a Sabina estremeceu suas relações com Sigmund Freud. O relacionamento dos dois já estava estremecido porque Jung discordava da ideia de Freud de que todo comportamento humano tinha uma raiz sexual. Por outro lado, foi se inclinando para um caminho mais místico, do qual Freud não compartilhava.

O interesse central de Sabina em seus trabalhos estava nas raízes da agressão e da destruição, como a estrutura psíquica é formada na primeira infância, e os processos de mentalização e formação de símbolos no desenvolvimento da criança.

— Ela foi a primeira psicanalista a se dedicar extensivamente à compreensão do desenvolvimento da criança e da formação de símbolos, antecipando o trabalho de Melanie Klein por quase oito anos — destaca Coline.




Quando retornou para a Rússia, Sabina instalou-se em Moscou. Já casada com o médico Pawel Scheftel, difundiu as ideias da psicanálise no país, onde também dedicou-se ao trabalho com crianças em institutos psicanalíticos. Mas suas ideias esbarraram na resistência do regime stalinista e, em 1924, voltou para sua cidade natal, Rostov-on-Don. Já em 1941, durante a Segunda Guerra Mundial, a médica e suas duas filhas foram assassinadas por alemães.

— Seu esquecimento costuma ser atribuído ao pouco reconhecimento de Jung e Freud, mas também ao isolamento em que esteve após se mudar para a Rússia — diz Coline.

Setenta anos depois, o cinema e a literatura resgatam suas memórias.




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Um comentário:

J. disse...

o filme é interessante (talvez porque eu acho tudo interessante, quando o assunto é Jung, rsrs).
Adoro saber das histórias que envolvem as descobertas em psicologia. Comprei um livro recentemente, depois de ler o de Nise novamente, e descobri o tal do Adler. Agora a Sabina.
Estou louca pra ler tudo isso.